sábado, 15 de outubro de 2011

Sempre ler e reler sempre, essa novela que promete ser imensa in:http://herdeirosdodeserto.blogspot.com/2011/10/sempre-ler-e-reler-sempre-essa-novela.html


Sempre ler e reler sempre, essa novela que promete ser imensa


Então, ele me disse: A minha graça te basta, porque o poder se aperfeiçoa na fraqueza...”
(Dito antigo que Joselito aprendeu pelo tempo)
Tudo dava a crer que os céus conspirariam a seu favor depois do contundente sermão do domingo cujo tema “a fé do tamanho de um grão de mostarda” entusiasmou todos os presentes, que repassaram a todos os ausentes.
Depois disso, coisa nenhuma impedia o miúdo Joselito de crer que, já que tudo era completamente possível, inclusive uma montanha jogar-se ao mar por vontade da fé, uma perna ressecada não seria embaraço algum para um poder imensurável colocar em plena forma. O ânimo pela possibilidade cresceu, tomou forma de esperança. De chofre, iniciou pensamentos ocasionais, desses que vem ao mundo só por que algo é provável, mas que nada de concreto possui, nos quais já se via sendo escalado para jogar na linha ao recreio, deixando de ficar plantado na ingrata condição de goleiro, se nem sequer competência para ocupar as traves a perna que bambeava como uma vara de taboa espancada pelo vento, lhe deixava de sobra. Estimulado, perdeu-se em inevitáveis variações sobre um mesmo tema; não só ser escalado longe da meta, mas fazer o gol principal da acirrada pelada da sexta-feira, de preferência com o pé da perna que, a esta altura, estaria des-mirrada. Ser disputado no par ou ímpar, ser aclamado como grande atacante, o salvador da pátria, eis todas as possibilidades que visitava seus ansiosos pensamentos.
Um dos sinais de que o etéreo dava ares de conspirar a seu favor era a chegada da data comercial do nascimento do nosso Senhor, a noite demais aguardada em que solicitações verdadeiramente importantes eram mais fáceis de serem ouvidas e desejos puros, merecidamente eram mais capazes de se realizarem. Poupou-se de qualquer desgaste antecipado, preferindo deixar para a noite certa o pedido oficial a ser cuidadosamente rezado no leito repleto de tantas expectativas. Nada de jogar com verbalizações antecipadas. Sem desperdício de rogos. O resguardo de qualquer pronunciamento precipitado era fundamental para não sugerir que sua extrema prece se parecesse com as vãs repetições de qualquer pagão, o tipo desnecessário de palavrório que ofende os céus. Estava empenhado em conservar-se naquele último dia antes daquela noite como um oceano de segredo.
A véspera do dia vinte e cinco iluminou-se em suas primeiras horas de uma longa luz preguiçosa, que calmamente se estendia no quintal sobre canteiros de margaridas e avançava parede a fora, de onde pendiam begônias em vasos de um barro esverdeado pelo laborioso bolor do tempo. O ar parecia filtrado por frescos aromas indefinidos dissipando um brumoso véu de névoas, enquanto árvores em franca paz deixavam passar turíbulos de um abençoado brilho sideral. Toda pureza de um dia sereno lhe acariciava o cenho com uma paisagem acesa, óstias consagradas da esperança. Preparava-se para seu último dia de constrangimentos olhando a perna que sempre se arrastava atrás da outra deixando-o em metade atrasado na vida. Chegou a sorrir bem fraco consigo mesmo pensando em despedir-se do infeliz defeito, mas conteve-se, não queria que deboches, mesmo que razoáveis, lhe tirassem do estado quieto, que poderia ser um dos geradores do milagre. Outra ponta de sorriso, que também foi depressa dominada, se manifestou ao imaginar o que diriam dele na manhã da prodigiosa benção quando o andar capengante não mais lhe açoitasse o corpo, e, alinhado como um valete de baralho plantasse ao pé da familiar mesa do café. “Quem te fez tal coisa menino, quem te engordou a outra perna?”, seria a fala de sua pasmada família, mais especificamente do pai, um crédulo descrente em milagres. Talvez espanto maior fosse no colégio quando, de propósito se faria de perdido nas horas, dentro do prazo de tolerância para não arruinar a surpresa, pediria educadamente licença como se nada de novo se passasse e cruzaria a sala todo endireitado no andar para tomar seu cativo assento no excludente lugar de hábito. “Não é este o filho do Jose Maria, e não está ele a arrastar a finura de uma perna entre nós desde sempre?”, seria uma das inquirições entre salas, corredores e recreios da escola.
Entre trabalhadas imaginações, todas incompartilháveis devido à admiração que queria causar entre todos os que, de bem ou de mal, eram membros de seu convívio, foi ele atravessando o dia, sentindo a mão da natureza como um protetor símbolo da fé.
À hora em que o crepúsculo descia sob um vasto céu de crença sentiu-se indizivelmente triste e só como a tarde que morria. Testemunha de sua dor, as últimas horas pareciam também tremer de sofrimento. Enquanto o resto da tarde fugia do firmamento, a noite em que seu drama fúnebre teria a possibilidade de se tornar melancólica lembrança avançava escondendo em suas entranhas todas as chances de qualquer poesia. No seio da verdade em breve se deitaria, e sua vida até aquele momento estaria concentrada numa elaborada petição, e, dependendo do desfecho, pela manhã ou sentiria saudades do crepúsculo que descia na tarde anterior, mesmo sendo de um irresistível desencanto, ou fecharia enfim o capítulo da tragédia de sua dolente vivência.
À medida que o começo da noite se anunciava, um receio foi lhe enchendo a resumida vida que até ali puxara. O nosso Senhor, aniversariante da noite não carecia de presente algum, uma vez que tudo lhe havia sido dado pelo Pai havia muito tempo. Agora, como Joselito acreditava, não com tanto empenho como um dia antes, era Ele, o nosso Senhor, que distribuía presentes em forma de milagres, ou como alguns preferem chamar, concertos físicos. O fogo pede prova da fé. O tempo cobra permanência da crença. A não concretização do milagre exige ainda bom testemunho.
As comemorações ao aniversariante seguiram por um pouco noite adentro, não era de costume da família as desnecessárias comilanças. Como de habituosa tradição familiar cearam, se felicitaram com saúde e paz, rezaram as graças do Pai nosso e pronto, fecharam-se as felicitações. Estava entendido que a cama era a próxima e última parada da noite. As benzeduras da noite, sem as quais nenhum dos outros quatro irmãos, contando com ele cinco, se aquietava entre os colchões, foram particularmente ministradas com atencioso acatamento pelo pai José Maria.
Joselito prontamente se esquentou no leito, aquietou-se por fora, agitou-se por dentro. Chegara a hora da aguentada prece ser soltada. Provido das palavras da admoestação do domingo, pediu um pouco de perdão por ter vacilado à entrada da noite quando o receio o levou a amuar em algumas desconfianças. Mais leve, menos descrido, entoou a prece que guardara ensaiada em protegida quietude, incubado-a em seu meniniço coração. Nada exigiu, com prudente instrução só um milagre, ou concerto físico, foi o que pediu. Expôs sua indigência, queria depor sua vergonha. Sentiu-se ouvido quando, inativo, foi continuar-se em adormecidos sonhos. Nada mais sentiu do mundo além da cama que lhe acoitava a sonolência.
Na beira da manhã, a alma pareceu despertar primeiro, descolando-se do corpo com as primeiras rajadas de luz levemente azuladas das sobras da noite. Esperou, olhos semi-cerrados, a alma recolar-se de novo ao corpo. Da cintura para baixo não cogitou esticar preguiça, cautela era de tudo um pouco, temência, ansiosidade, expectação; imensidão de um intérmino suplício. A medida de todo o seu existir ou des-existir a seguir, concentrada ali no forrado leito. Ou o outono infeliz que ia bem longe, ou a primavera que já vinha perto. Acordado para a vida, permaneceu intermináveis minutos concentrado em si, entorpecido na tremenda aridez de uma inclemente espera. O lençol que encobria as ocorrências da noite, que assegurava a justeza da aflição que se passava, demorou-se a ser jogado. A perna que não se arrastava criou coragem, lançou por terra o pano encobridor dos fatos.
Na falta de coragem para olhar pra baixo, olhou. Depois de constatar o que não se passara durante toda noite sentiu saudades do crepúsculo que descia na tarde anterior, mesmo sendo de um irresistível desencanto. Logo logo molejou-se escada abaixo, chegou-se à beira da familiar mesa do café atrasado de um lado do corpo, adiantado de outro, e falou muito baixo, “não foi nossa culpa, nem minha nem Dele”, tomou acento, beliscou num pão, bebericou num leite, e aperfeiçoou o que não disse, “apenas uma coisa me convém: sempre ler e reler sempre, essa novela que promete ser imensa, desde a tarde que cede, o céu que desmaia, o sol que declina e tomba, ensanguentando a crista das montanhas”.
Aquilo transbordou realidade na mesa. Um silêncio profundo rompeu o ventre das mais sérias ilusões e não houve qualquer um que levantasse dúvidas sobre os porquês das resumidas frases repletas de duríssimas verdades.


Alex Carrari